domingo, 22 de novembro de 2009

O flagelo da "tunite"



Passadas pouco mais de 2 décadas sobre o ressurgimento do fenómeno tunante, temos vindo a apercebermo-nos, ainda que amiúde, do facto deste fenómeno ter entrado numa certa fase de regressão onde se vai notando o esbater, o abrandar do fôlego e ímpeto, quase eufóricos, que subsidiaram o denominado "boom" da década de 80, e inícios de 90, do século passado.
Com a formatura das primeiras gerações tunantes, e como desgaste provocado pela escassez de sangue novo, as nossas tunas envelheceram rapidamente.

Dizia-se, no último ENT, que a nossa comunidade, contrariamente ao registado no país vizinho (onde o processo de maturação cobriu todos os passos naturais), conseguiu, em 2 décadas, o que outros precisaram em 100 anos de experiência: nascemos, com um fulgor tal fogo de palha, multiplicámo-nos (superando qualquer baby-boom), estabilizámos, estagnámos e, por hora, entrámos na fase do envelhecimento (precoce).
Obviamente que, como referia o Ricardo Tavares, o facto de termos atalhado caminho e ignorado hiatos temporais e experienciais, impediu-nos uma maturação paciente, suportada e verdadeiramente, enraizadora (colmatando a brechas com invenção engenhosa: uma peneira a tapar o sol).
Muitos castelos de arreia vão ruindo, na exacta medida em que foram criados.

Actualmente, parece começar a ser preocupação generalizada o facto de muitas tunas estarem já mais a sobreviverem e tentarem não se extinguirem, do que outra coisa qualquer, ou com uma média de idades já respeitável.
Estamos perante uma "Tunite", sinal dos tempo e, certamente cíclica; algo que a história já demonstrou cabalmente no passado, após o primeiro grande fenómeno tunante em Portugal.

No último ENT, sob o tema das Quarentunas e Tunas de Veteranos, ficou bem patente essa preocupação, a qual levou alguns, menos avisados e ponderados, a misturar conceitos e assuntos. Embora o tema versasse sobre os formatos existentes para os que recuperam a sua velha capa e instrumento, depois de mais, ou menos, longa ausência da vida tunante, muitos foram os que ali quiseram, antes de mais, extrair soluções para evitar a extinção dos seus grupos - coisas distintas, é facto.

Como já dito, o tema das Quarentunas, e equiparados, é demasiado "quente", ainda, para ser alvo de estudo e de fórmulas inequívocas, nomeadamente no seio daqueles que ainda pensam mais com o coração do que com a razão.

Ora, essa questão da durabilidade de projectos, o problema na manutenção das tunas deveria ser encarado com uma maior razoabilidade.

Se a Tuna chega ao fim da linha, pelos mais diversos motivos, há que saber, antes de mais, dar-lhe condigno fim, ao invés de esticar a corda a ponto de criar, nos demais, aquele sentimento de compaixão quando se compara o que foi o grupo e aquilo em que se tornou por teimosia de alguns que, embora bem intencionados, acharam haver elixir da juventude para toda e qualquer ruga ou falência generalizada dos órgãos.

Achei, pessoalmente, incoerente que, no país vizinho, houvesse quem defendesse que as quarentunas de faculdade (nomeadamente as que derivam das tunas de origem) teriam a obrigação moral (pelo menos) de evitar a extinção da tuna de onde eram oriundos, tocando com os mais novos, assegurando, por todos os meios, a sobrevivência.
Obviamente que a história, nomeadamente em Espanha, é rica de exemplos de tunas extintas, e de quarentunos cuja tuna de origem (onde começaram) já há muito não existe. É a lei natural da vida; não vejo por que razão fazer disso um drama, por mais triste que nos possamos sentir (nomeadamente quando falamos de grupos que ajudámos a fundar).
Sei do que falo, pois a minha primeira tuna, a da minha universidade, já há muitos anos que se extinguiu.

Querer, teimosamente, prolongar a vida, só porque sim, parece-me um exercício compreensível (do ponto de vista sentimental), mas pouco certo, quando racionalizado.

Pior, ainda, quando pensamos naqueles que defendem as quarentunas como garante da continuidade das tunas de faculdade, prefigurando uma espécie de aparelho de suporte de vida, onde a tuna é entubada e faz respiração artificial e é alimentada por sonda gástrica e litros de soro.

No ENT, foi notória aquela pergunta, a jeitos que de revolta e mágoa, traduzida num "E agora, para onde vou, o que faço?". Bem sabemos que, a determinada altura, uns quantos se afastam e ficam uns resistentes a querer, a toda a força, obrigar o carro a andar só porque ainda tem rodas e carroçaria.
Entendendo o que irá na alma de muitos desses tunos, não podemos deixar de dizer: "Parte para outra!".

É nesse âmbito que se inserem, por exemplo, as tunas de veteranos/quarentunas, quando uns quantos, depois de afastados de um contexto próprio que já passou (seja por extinção, seja por qualquer outra razão que tenha ditado o afastamento), recriam o mester, juntamente com outros em situação igual ou parecida (antigos tunos que já não militam, há muito, nas tunas de origem), mas já em moldes mais adequados a uma situação muito própria, em moldes mais adaptados aos tunos (e não o contrário, onde eram os tunos adaptados ao molde Tuna).
Haja, contudo, o discernimento para se perceber que tunas de veteranos ou quarentunas não são prolongamentos ou "franchisings", antes um modelo diferente, em contexto, também ele diferente, e não necessariamente agrupando apenas tunos provindos do mesmo grupo de origem. Estas tunas "vintage" não ocupam lugar de ninguém senão o seu, tal como o avó não ocupa o lugar de filho ou de pai.
As tunas de veteranos/quarentunas não são, também, upgrades para subsituir, antes um lugar de partilha saudosa e reavivar de memórias, ao ritmo de quem nelas milita.
Mas se a situação não se coaduna com a ideia de veteranos, há sempre a possibilidade de ingresso noutra tuna, de criação de uma nova (mesmo que com menos elementos), ou adopção de projectos paralelos, ao jeito dos Sabandeños ou Gofiones, de que os "Lusíadas" são um exemplo português por excelência.

Assim, por mais que custe (e reconheço o facto), quando é chegada a hora, haja o bom-senso de dizer: chegou a hora, acabou!
Extinguiu-se a nossa querida tuna, que tanto nos deu, a quem tanto demos....... paciência, é a vida!
Que fiquem, antes de mais, as imagens de uma tuna que sai pela porta grande, do que uma longa doença terminal que cria mais dor, empalidece a imagem e reputação, cria cisões e, acima de tudo, leva a cuidados "paliativos" escusados (porque doentes terminais são isso mesmo) e a um gasto de cinergias que teriam melhor emprego em projectos alternativos ou noutros formatos tunantes.
Cuidados paliativos em Tuna são esconder ao corpo os problemas levando-o a utopias e ilusões que agravam, mais do que ajudam a tomar decisões, que mesmo dolorosas, são necessárias. desligar a máquina.

Haverá uma idade para tudo, e um fim para tudo. "Nada se perde, tudo se transforma", dizia Lavoisier. A cada um compete saber quando.
O facto das Quarentunas terem estabelecidos os 40 anos como idade mínima (pois poderiam ser cinquentunas, por exemplo), e as tunas de veteranos outra fórmula qualquer, não é imposição que faça bitola (poderá, um dia, sê-lo, quiçá - mas ainda é cedo para essa discussão), até porque é uma determinação para o próprio grupo, e não uma reforma automática que obrigue, seja quem for, a reformar-se chegando a esta ou aquela idade, a este ou aquele patamar.

No ENT de Castelo Branco, esperavam, alguns, medidas miraculosas e soluções de largo espectro para o evitar das mortes anunciadas, elixires de juventude para projectos moribundos ou em conjectura de dificuldades de recrutamento e renovação.
Não as há. Cada qual, na sua realidade e contexto, deve procurar solucionar o melhor que puder e souber. E quando não for possível, será, provavelmente, porque não há mesmo como, restando dar espaço ao curso natural das coisas.

Umas vezes operam-se milagres, novas gerações salvam a coisa e ressuscitam o projecto, outras chegam ao fim da linha, e nada a fazer.

O tempo em que as tunas encantavam, a euforia de há uns anos já passou, tendendo o fenómeno a estabilizar, embora isso também se faça à custa da chamada selecção natural, à custa da extinção de muitos grupo (e nascimento de outros, porventura), de reajustes, de mudança.
O tempo dirá de sua justiça.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Caloiro da/na Tuna e o Pardillo



Ricardo Tavares, especialista no estudo do fenómeno tunante, sublinha, e bem, que “70% do que éramos, no “boom” – hoje não se pode dar tais valores, de todo – à Tuna espanhola o devemos. Os restantes 30% dividem-se, em doses desiguais, entre outros factores, onde está a Praxe incluída mas não só.”[1], o que desde logo nos deverá levar a reflectir um pouco sobre aquilo que hoje é a nossa Tuna e que traços nela são mero adorno artificial.


Um dos aspectos onde claramente vamos encontrar uma influência muito própria da Praxe (das praxes, para sermos exactos) na Tuna (os tais 30%, grosso modo, de que fala Ricardo Tavares) é na concepção do estatuto e papel do Caloiro da Tuna (a própria adopção da designação é discutível), que é apenas um dos aspectos  onde demonstrámos não apenas não saber copiar o exemplo que (re)importámos, como nos apressámos a inventar por cima sem critério, bom senso e respeito.
Como diz Ricardo Tavares, no seu mais recente artigo, urge um PRET - Processo Retroactivo de Educação Tuneril.
Mas vamos ao que interessa (ou não, para alguns).


O que é ser Caloiro na Tuna e em que é que isso difere, ou não, de ser Caloiro, propriamente dito (aquele que frequenta pela primeira vez o ensino superior[2]) ou, ainda, do papel e estatuto de novato em Tuna, segundo consagrou a tradição tuneril, bem antes do reavivar (e muitas vezes inventar sem nexo) das Tradições Académicas, nos anos 80 do séc. XX?

Uma das características mais visíveis em muitas Tunas é precisamente o facto de quase nenhuma diferença haver no tratamento dado aos caloiros da Tuna, relativamente àquele que também é dado pelos veteranos nas recepções ao caloiro e toda a panóplia de ritos e quejandos por que passam os novos alunos, quando entram na universidade.

Decorre tal, como bem percebemos, desse contágio ocorrido na altura do “boom”, onde os protagonistas do reavivar das tradições eram os mesmos que reabilitaram o fenómeno Tuna. Não sentindo, na altura, necessidade de separar águas (e muitas vezes, por falta de informação, não sabendo sequer serem coisas realmente distintas), as praxes e ritos aos caloiros eram transversais, seguindo a noção (embora errada) que as Tunas eram uma expressão da própria Praxe.

Assim sendo, não apenas a forma de entender o papel de caloiro, mas também hierarquias, procedimentos e regras foram estendidas à Tuna - recordando que, em determinados casos, se chegou mesmo ao ponto de contemplar e “regrar” Tunas dentro dos respectivos Códigos de Praxe (erro grave que ainda sucede actualmente, infelizmente).


Erros de Concepção

(I)
Noção de Caloiro

Um dos equívocos desde logo, que apontamos à noção do “Caloiro da Tuna”, que perpassa em muitos grupos, é a diferença quanto àquilo que define "caloiro".

No Ensino Superior, saiba o aluno de praxe ou não, seja ou não fã, participe muito ou pouco, seja ou não rapado, terminado o 1.º ano e matriculando-se pela 2.ª vez, deixa imediatamente de ser caloiro (mesmo que tenha chumbado nos exames e volte a ter de frequentar o primeiro ano, na sua faculdade ou outra qualquer).

Na Tuna tal não sucede.
Na Tuna é-se caloiro enquanto não se adquiriram as competências artísticas mínimas para estar apto a tocar a par com os demais. Por outro lado, ser Caloiro implica uma fase de aprendizagem não apenas musical, mas também cultural (cultura e história do grupo, sua praxis, suas idiossincrasias). Há pois, de certa forma, a promoção da meritocracia, pese embora muitos grupos serem pouco ou nada exigentes e conferirem o estatuto de Tuno a uma pessoa só porque “é um tipo porreiro e bebe uns copos”.

Tentemos ser um pouco mais claros. A tuna é muitas vezes referida como “el negro menester” – isto é, “o mister negro”. Ora a palavra “mister” significa “profissão”. Em qualquer ofício (sapateiro, tecelão, alfaiate, caldeireiro...) havia aprendizes, oficiais e mestres. Ora há aprendizes que aprendem mais depressa as técnicas da profissão, e outros que aprendem mais devagar. Para passar a oficial, o aprendiz tinha de apresentar uma obra que demonstrasse que estava apto a desempenhá-la convenientemente e que conhecia os truques da profissão. A obra era examinada por mestres da corporação, sendo o candidato então considerado oficial (profissão=ofício) na sua actividade.

Ora, se a tuna era (ainda que por metáfora) um ofício, haveria necessariamente aprendizes, oficiais e mestres. Facilmente se percebe que o tempo necessário para aquisição das técnicas (sejam elas quais forem...) varia de indivíduo para indivíduo. Suponhamos um pedreiro extremamente competente na sua actividade mas que resolve dedicar-se à tapeçaria. Entrará na oficina de um tecelão como aprendiz, por mais anos de experiência de trolha que possua, começando por exercer as actividades mais básicas e de menor responsabilidade do mister de tecelão – tarefas repetitivas e pouco criativas, como desenredar meadas de fio, separar fios de lã por cor e espessura, varrer a oficina, fazer recados, etc., em troca da aprendizagem dos truques do ofício.

Assim, na tuna, por mais anos de estudante que um fulano tenha, ao entrar para a tuna não passa de um aprendiz: carrega instrumentos, encordoa-os, afina-os, copia pautas, letras e tabelas de acordes, faz recados...

Não deixa de ser curioso que esta noção de “período de aprendizagem” (variável, como se viu) tenha contaminado, por sua vez, a noção de caloiro. 
Ora em praxe, e por definição, caloiro é o indivíduo que se matricula no primeiro ano pela primeira vez, deixando automaticamente de o ser, após o  cortejo da queima das fitas, passando automaticamente à categoria de pastrano. 

Se na tuna é relativamente fácil perceber que haja um conjunto de técnicas que é necessário aprender (quanto mais não seja técnica instrumental), não conseguimos descortinar quais sejam as técnicas que um estudante tenha de aprender para ser considerado como tal... 
Basta estar matriculado para se ser aluno.

 Ser-se caloiro numa tuna é, por isso, radicalmente diferente de se ser caloiro em praxe (e aqui encontra justificação questionar-se a adopção do termo "caloiro" no meio tunante, porque cria forçosamente confusão, porque porventura o termos menos apropriado a usar-se). 

Um veterano que tenta entrar numa tuna começa por ser aprendiz (caloiro), tal como no exemplo que demos acima. Um aluno que se matricula pela primeira vez não é aprendiz de rigorosamente nada – a não ser das matérias do curso que se propõe tirar.

Sendo assim, é compreensível que, sendo considerado apto, o aprendiz receba um qualquer distintivo da sua passagem a oficial. Nas tunas espanholas actuais, é uma beca. 
Antes disso, e até à década de 40-50 do séc. XX, em Espanha (após a guerra civil e quando o franquismo se consolida) nada aponta para a existência de hierarquias, apenas e só os cargos administrativos (presidente, secretário e tesoureiro) e o maestro.
Em Portugal, só a partir dos anos 1980 é que entra a hierarquia ("praxística") na Tuna.

Erradamente, e sem qualquer razão aparente, há, nas faculdades (nas "praxes"), muito quem trate o caloiro como um aprendiz, que só ao fim de um período de aprendizagem passa a ter o direito de trajar. Importa perceber uma coisa: que se espera exactamente que o caloiro aprenda? A rapar? A dar colheradas? A berrar insultos aos ouvidos de alguém? A dominar as técnicas de fazer flexões? Nada disto é praxe, mas admitamos que fosse. É isto que se espera que um caloiro aprenda?
Praxe e "praxes" são coisas distintas. Em muitos casos, quase todas as "praxes" nem Praxe são sequer (sobre esse assunto, leia AQUI).

Ora, por que diabo se tratam, por vezes, tão mal os caloiros nas Tunas, mandando-os “encher” ou passar agruras que nada têm, de facto, a ver com a tradição Tunante e os próprios objectivos ou vivência próprios de uma Tuna?

O que se pretende que o caloiro aprenda ao fazer 30 flexões, andar semi-nu a correr na rua, andar de joelhos ou de quatro, muitas vezes vestido como um anormal (e já lá vamos a essa parte do trajar) ou deixá-lo a N quilómetros do destino, mandando-o sair do autocarro?
Aprende algo que o prepare melhor nas suas futuras funções de Tuno? O que aprendeu ao fazer 30 flexões: 30 acordes novos ou a letra de 30 temas?
E ao raparem o novato: garante-se que ele ficou a saber como se define uma Tuna?
Ao colocar o caloiro de quatro a gatinhar, desenvolveu técnicas de pandeireta ou de porta-estandarte?
O que aprendeu ao mandarem-no dormir ou comer no chão : o regimento interno da Tuna ou o n.º de prémios alcançados na última década?
O que se ensinou ao caloiro com grande parte das "brincadeiras" copiadas das que se fazem lá nas "praxes" da universidade? Aprendeu algo ligado directamente à actividade tunante?


Não se cai, demasiadas vezes, na tentação de, para medir a autoridade e poder, trazer as “praxes” lá da faculdade, para dentro da Tuna (ou esta ser uma extensão das mesmas), e tudo isto sob a hipócrita desculpa que se está a forjar o carácter da pessoa ou a desenvolver nela competências de sobrevivência (tipo recruta - na mesma idiota concepção da maioria das praxes universitárias)?

Que leve o tabuleiro da comida aos Tunos, transporte instrumentos, seja o paparazzi de serviço, zele por fazer as camas aos veteranos da Tuna….. são aspectos que estão intimamente ligados à vivência em grupo de uma Tuna, mas a humilhação gratuita e certas brincadeiras que apenas visam rebaixar o indivíduo (que por vezes o podem colocar em risco - como abandoná-lo a quilómetros do destino), o gozo para satisfação umbilical  ou reforço de status quo…..parece-nos exagerado (e é-o, de facto).

Não há nenhum registo de tais “abusos” e brincadeiras antes dos anos 80 do séc. XX, nas Tunas.
Aliás, na larga maioria nem se praticava, nomeadamente em Portugal, quaisquer “praxes” que não passassem pela obrigação de estarem ao serviço (uma espécie de escudeiros, verdadeiros aprendizes dos tunos veteranos).
Mas essa relação não resultava de autoritarismos tontos, de subserviência imposta, mas do respeito natural entre pessoas e funções (e modus operandi) que a cada um competia. 
Não havia praxes por cá, porque não eram precisas para nada; porque nunca fizeram falta para termos uma tradição secular de tunas de grande qualidade.


(II)
Outra noção errónea é a de que um Caloiro da Tuna é Tuno.
Não o é, obviamente.

Mas se não o é, por que razão sobe a palco, se em palco deve apenas estar a Tuna, composta apenas por Tunos?

Dirão alguns que é porque já sabe tocar e cantar bem (já "desenrasca").
Ora se sabe, num grupo que é, na base, musical, então deveria ter passado a Tuno (em teoria).

Mas irão, então, retorquir que outros dados concorrem (que não apenas competências artísticas). E diremos,então também, que é verdade e voltaremos a perguntar por que razão está o rapaz em palco, se ainda não completou o percurso na íntegra, se de facto ainda não é Tuno?
Ser Tuno, sendo uma soma de aspectos, não se pode compadecer com “juglarias”, onde há Tunos e “meios-Tunos” (ou semi-tunos), que isso não existe. Seja-se, pois, coerente.

Neste apartado, há também registo de um grau ainda abaixo de Caloiro, em jeito de “candidato” – algo para o qual não encontramos plausibilidade alguma e acaba, ainda a por cima, por desvirtuar o próprio sentido do papel e estatuto de “Caloiro”, dando-se equivalência de Tuno aos denominados “Caloiros” (pois deixa-se que actuem a par com os demais) e tornando o “candidato”[3] equivalente a Caloiro (que é como dizer que um aluno do 12º ano é caloiro, e que um caloiro é doutor, e um finalista é licenciado – e depois ainda vêm falar das equivalências do ministro Miguel Relvas!).


(III)
Gestação de um futuro tuno.


Outro conceito que merece reflexão é o da forma como se faz o acompanhamento dos caloiros da Tuna.

Fica este aspecto na área da sugestão para maturação dos leitores.


Usualmente, como muitas tunas fazem, existem um padrinho responsável pela “educação” e formação do caloiro. Não significa que seja o professor particular de música do novato (que muitas vezes até vem a saber mais de música que muitos veteranos), mas de ser garante de uma boa integração e cumprimento de deveres (e defesa de direitos).
Contrariamente às universidades, deveria ser a Tuna a indicar o padrinho, o tutor, pois trata-se de ter perfil para ensinar e acompanhar; e nem todos são talhados para esse tipo de tarefa. Claro está que quando o caloiro já conhece um dos tunos e tem com ele afinidade, a Tuna deve ter isso em conta (e muitas vezes, ou quase sempre, é o que sucede).

Contrariamente às faculdades, onde o caloiro continuará, em princípio, aluno por mais 3, 4, 5 anos (ou mais), na Tuna ser caloiro não significa chegar a Tuno. Pode o candidato não ter aptidões, de facto ou, pura e simplesmente, desistir.
Ora, como diz o velho adágio popular, “não se caçam moscas com vinagre”, pelo que não podemos, em circunstância alguma, deitar por terra os cada vez menos recursos humanos que chegam à Tuna (noutros tempos, quando a Tuna era moda, sim), afugentar a base de recrutamento porque se “maltratam” os caloiros ou chegar a Tuno é quase como fazer recruta nos Comandos.
Na tuna está para tocar e cantar decentemente, fazendo-o de forma concertada e harmoniosa com os restantes elementos. Isso é que é essencial preparar e garantir.

Haja bom senso para perceber limites. A Tuna precisa de renovação e sem ela a Tuna extingue-se.
Tuna não é Praxe e a Praxis da Tuna não são as “praxes” (nem as podem ter por modelo).
A esse propósito, podemos ler, sem mais adições:


“(…) se dice que los pardillos son los menos importantes en el escalafón de la Tuna es verdad que son los más importantes dentro de este negro mester, pues son los sucesores que transmitirán el la tradición a cabalidad, instruyendo a los nuevos con los mismos valores y rigores inculcados por los antiguos Tunos fundadores. “[4]


Traje de Caloiro

Uma das invenções,  questionáveis em alguns casos, que temos em Tuna é a do dito “traje de caloiro”.

Diremos que, em abstracto, concordamos que possa haver uma indumentária identificativa, quando se pretende que os novatos acompanhem a Tuna (são sempre precisos criados, e além disso fazem como que um estágio, aprendendo ao verem in loco), pese o facto de poder ter havido maior cuidado em termos de harmonia entre panos (de facto, há "coisas" sem pés nem cabeça que até atentam à própria dignidade da Tuna, como ter caloiros em palco em tronco nu ou apenas de boxers).

Só que quando o dito “traje de caloiro” é um passaporte para irem a palco………………alto e pára o baile!
Nessa altura, e não apenas porque caloiros não devem estar em palco (só, e apenas, Tunos), outro aspecto salta aos olhos: o conflito estético entre trajes (pelo menos esse aspecto poderia, e deveria, merecer reflexão).

Antigamente eram pijamas, calções, fraldas gigantes e quejandos, directamente importados às praxes .
Claro está, que isso decorre daquele monumental erro e noção de que os caloiros não podem trajar, quando está comprovado que isso não apenas não é tradição, mas antes sim uma noção sem qualquer fundamentação (ver AQUI).
Depois fez-se uma actualização e começaram a aparecer, pasme-se, trajes supostamente “históricos”, onde se lhes inventa um pedigree etnográfico, se repesca uma suposta roupa do folclore local, etc.

Já não é apenas, ou especialmente, o colidir visual de trajes académicos (ou de tuna) com “panos" que destoam desde logo, mas o inventarem argumentos pseudo-históricos para justificar essas vestimentas (os ténis porque a tuna é de desporto, as batas brancas, porque ligada à saúde, os fatos-macaco a lembrar o trabalhadores de Alguidares de Cima, o lenço vermelho a lembrar X ou Y, os hábitos dos monges numa alegoria equivocada aos antigos clérigos goliardos de que supostamente descenderiam os tunos, e afins ("afins" que chegam a mter caloiro sem palco à civil, de ténis, de leggins, de T-shirt...), num elenco digno dos Prémios Razzies[5]).

E mais nesse aspecto que se condenam certas opções, ou seja nas invenções de teses, de textos argumentativos sem nexo, sem rigor histórico ou etnográfico, de que algumas tunas pomposamente fazem gala.

As Origens

Se queremos ir às origens, para perceber em que moldes deveríamos conceber o Caloiro da Tuna (termo a que prefiro contrapor o de novato ou aprendiz), então olhemos para a figura secular do Pardillo.

 
O Pardillo[6]

 “Pardillo” era um termo depreciativo para qualquer novato – e isso nada tinha que ver com o facto de o traje dos alunos “não-caloiros” ter uma cor diferente.
Os estudantes criados dos estudantes ricos (os “gorrones”) tinham um traje diferente “capa y gorra” versus a “loba, sotana y bonete” dos ricos.

 Só os nobres estavam autorizados a vestir de cor. Os camponeses e burgueses vestiam de linho, burel ou lã, que podiam ir de um quase beige a um castanho muito escuro e até mesmo um cinza-esverdeado. Isto é, a roupa do “povo” tinha uma cor pardacenta. É isto mesmo o que quer dizer “pardillo” – e, por extensão, campónio, labrego, guardador de gado.

O clero usava roupa preta porque não era nobreza nem povo... Não sendo nobreza, não pode vestir de cor (excepto os escalões mais elevados); se vestisse de cor “parda” confundir-se-ia com o povo... daí (em parte) o negro (aspecto sobre o qual já se explicou a origem, no N&M).

O próprio “Palito Métrico” diz isso mesmo: “Certa vez desceu do monte à nossa cidade um certo novato, cujo nome, se bem me lembro, era João Fernandes”. No fim, o pai dá-lhe uma coça que o deixa em lençóis de vinho, manda-o guardar cabras e ir à tábua.
Em especial nos Colégios, os alunos tinham de fazer prova de ascendência nobre por todos os quatro avós. Implicar que o aluno era um campónio filho de alguém cujo avo/avó casara com o(a) filho(a) de um lavrador rico... era um insulto tremendo. Daí a designação.

Nada, mas mesmo nada que ver com o facto de o traje de uns e outros alunos ter uma cor diferente.
Este “minus” (minorca), é, pois, um aprendiz que deve corresponder a um conjunto de expectativas e procedimentos dele esperado:


“Antiguamente y también hoy estos personajes de la Tuna deben un gran respeto a quienes son sus mentores o Tunos. Ellos son quienes los guían en el arte del buen Tunar y estos conocimientos entregados por los Tunos deben ser retribuídos a través del servicio, la humildad y el aprendizaje del gran listado de valores de la Tuna”.[7]


Em algumas Tunas espanholas existe a figura do “Cabo de pardillos”, também apelidado de “Pater Pardillus”, que é um veterano que coordena o processo de pardillaje (aprendizagem/educação tunante) e serve de interlocutor entre os caloiros e a Tuna. Esse chefe dos caloiros costuma ter assento no organismo directivo da Tuna.

Assim, a pupilaje, este processo de formação e educação visa que os caloiros,e passo a citar,


“(…) lleguen (aunque les cueste) a ser personas altruístas y responsables, que velen por su prójimo -siempre gráciles y alegres- para que puedan enfrentar con estas herramientas la vida misma y sus problemas, con dinamismo y espíritu positivo. En general, que crezcan interiormente para ser mejores personas que las que llegaron el primer día intentando conocer el mundo de la Tuna.”[8]

Como se depreende, mais uma vez, os caloiros são assunto sério para nuestros hermanos, os quais acarinham, e muito, os que continuarão o seu legado, mesmo que tal não se deva, porque não pode, confundir com falta de exigência.
Os parâmetros de exigência dos Tunos espanhóis são muito elevados. Em Espanha não se é Tuno por “dar cá aquela palha”, como acontece neste país que licencia tudo e todos, sem exigir grandes provas ou saber (e que verificamos também nas tunas).


O Traje do Pardillo.

Contrariamente ao caso português (caso que só tem lugar nos últimos 25 anos, note-se), o pardillo (caloiro da tuna), em Espanha, apenas difere na indumentária, pela falta da Beca. Com efeito, a Beca (introduzida nas Tunas espanholas nos anos 50/60 do séc. XX) atesta a condição de Tuno, com o respectivo monograma no peito.

Em alguns casos existe também a figura do “Botellero”, um pardillo mais experimentado a quem se permite o uso de uma Beca sem escudo/monograma bordado.
Não há lugar a pijamas, sacos de batata e afins que, muitas vezes, em nada dignificam a imagem da Tuna, a sua seriedade e credibilidade, transformando-a, como por cá fazemos tantas vezes, num teatro de revista com guarda-roupa “à Lagardère”.

O respeito passa desde logo pela imagem transmitida visualmente e pela sua pertinência. Só à tuna interessa saber quem é caloiro. Aos que estão de fora, apenas interessa ouvi-la e ver.
Por isso se afigura pouco consentânea a tentativa de “dar nas vistas” de “show-off", onde tudo tem de ter rótulo, etiqueta, e hierarquia bem visível a quilómetros (resultando daí pessoas vestidas como foliões carnavalescos que, bastas vezes, não incutem respeito, seriedade e credibilidade alguma a si e aos grupo).


Concluindo


Até mesmo onde muitos de nós pensávamos ser pioneiros e únicos em questões de Praxe, afinal não descobrimos pólvora alguma.

 O que em sempre fomos bons foi em trazer para cá o que era bom, embora sempre com a irritante tendência de adulterar e “kitar” “à la portuguesa”, daí resultando, muitas vezes, algo que é sempre emenda, que é sempre pior que o soneto, quando não ridículo.

Caloiro, na/da Tuna não é o caloiro lá da nossa faculdade. E mesmo quando coincidem, o tratamento em Tuna tem de ser, necessariamente díspar, não havendo lugar e extensões ou franchisings estapafúrdios, deixando as praxes meterem o bedelho e mancharem o sagrado templo que deve ser a Tuna.

Seja a “caloiragem” vista como momento de aprendizagem e formação e não expediente para circos, como um momento para dar a conhecer e promover a Tuna ao novato, para passar testemunho, e este possa sentir-se acolhido e sem barreiras, para poder apreender as coisas sem pressões, coações ou receios, sem imagens públicas de caloiros reduzidos a bobos da  côrte.

Vista-se o caloiro decentemente, sentindo-se parte da Tuna, dentro do seu processo de progressão pelo mérito, ao invés de um mero “parvo” vicentino que não fica em terra, mas também não entra na barca, indo “à trela” do infernal batel.

Mas não se faça desse momento um “pró-forma” light, onde ser um tipo porreiro e beber uns copos é quanto basta para estar em palco, sem antes ter merecido o estatuto que de facto lhe permite ser um “inter-pares”, e não vestido como se tivesse uma cruz de David bordada ao peito ou andasse enfaixado e de campainha na mão para evitar contágio alheio[9].


Em palco não deve haver diferenças significativas, porque a harmonia não deve ser apenas sonora, como não apenas plástica, mas na sua simbologia e significância.
O parecer, será, então sim, verdadeira expressão de uma vivência coerente e genuína.




Nota: um agradecimento ao Eduardo Coelho, pela colaboração na redacção deste artigo.



[1]A Aventura do “Boom”e visão periférica do mesmo fenómeno, in http://asminhasaventurasnatunolandia.blogspot.pt/, artigo de 3 de Julho
[2] Contrariamente ao que alguns imbecis defendem, só se é caloiro uma vez na vida: quando se frequenta a universidade pela primeira vez. Se nos anos seguintes trocar de curso, faculdade ou instituição já não volta a ser caloiro.
[3] Denominados, por exemplo, de “Carregas” na Instituna de Leiria; de “projectos” na Versus Tuna, TUALLE, etc.; “Batadas” na Tuna Com Elas – onde existe a ridícula definição de “Semi-Tunante”¸ de “Provetas” na Tunasabes; de “Aspirante” na Quantuna, entre outras tantas designações em muitas e muitas outras tunas.
[5] Os Prémios Razzies são prémios atribuídos na reunião anual Framboesa de Ouro para os piores actores e piores filmes do ano.
[6] Também conhecido por “chivo”, “novato” ou “pardo”.
[7] Natália Carmona et Al. – El Pardillaje, in http://issuu.com/naokita/docs/aspar/search
[8] In “Pardillo”,  http://tunochile.blogspot.pt/
[9] Como sucedia com os leprosos na idade média.