quarta-feira, 27 de julho de 2016

Tuna de Coimbra e do Porto impedidas de viajar em/para Espanha em 1900




Em fevereiro de 1900, duas tunas portuguesas são impedidas de prosseguir viagem para/em Espanha.
Estamos a falar do já conhecido caso da Tuna Académica de Coimbra (TAUC) e de um outro, agora descoberto, envolvendo a Tuna do Porto.
O que à primeira vista poderia suscitar a teoria que justifica razões políticas[1] para tal, parece não ter qualquer fundamento. Os motivos parecem bem mais simples e plausíveis.

TUNA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


Notícia que dá conta da partida da Tuna com destino a Salamanca.
Tempo, 5.º Anno, N.º 1079, de 21 de Fevereiro de 1900, p.2

 Partida da Tuna de Coimbra, no dia 23 de Fevereiro, com destino a Salamanca e Valladolid.
A Vanguarda, 5.º Anno (décimo), N.º 1188 (3134), de 26 de Fevereiro de 1900, p.3



Tal como narra "Qvid Tvnae", a Tuna Académica de Coimbra estava em Salamanca (chegada no dia 23 de Fevereiro), onde deu concerto e desfilou pelas ruas. Depois de uma estadia de 2 dias, pretendia deslocar-se a Valladolid, mas foi informada por telegrama (enviado ao chefe da estação de combóios de Salamanca) que o governador proibia a sua deslocação (alegando-se posteriormente motivos de saúde pública) e não deixando outra solução ao estudantes que não fosse regressar a Coimbra.
Ironicamente, mais tarde, já com a Tuna de Coimbra de regresso a Portugal, chegará novo telegrama a permitir a viagem.

"Pormenor interessante é o facto de, nessa visita, mais precisamente no dia 25[2], a Tuna Académica de Coimbra ter sido impedida de prosseguir para Valhadolid. O impedimento promanara do Governador daquela província espanhola, em decreto enviado directamente para o chefe da estação de Salamanca, obrigando os conimbricenses a regressar a Portugal, alegando questões de salubridade, de índole sanitária. Caricato, de facto. Já os portugueses tinham apanhado o comboio de regresso e chegava novo telegrama do governador que, afinal, permitia a deslocação."[3]

Esse episódio também é narrado no mais recente livro de José e António Nascimento (2010), e que também serviu de fonte ao "Qvid Tvnae", citando os periódicos conimbricenses da época:

 Pouco antes da hora da partida do comboio, apresentou-se na gare o Governador civil interino sr. Gil, que participou aos estudantes portugueses que acabava de receber um telegrama do Governador de Valladolid, dizendo-lhe que não lhes consente sair para aquela província; por cujo motivo se viram obrigados a suspender a viajem e a regressar a Coimbra. Como no inesperado telegrama não se fazia referência de nenhum género, respectiva aos motivos para que não fossem a Valladolid, os estudantes do reino vizinho, foram muitas as versões que circularam e muitos os comentários; inclinando-se a opinião geral a crer que somente razões de índole sanitária podiam ter originado a mencionada proibição.
Resultado de tudo: os estudantes de Coimbra pela ordem que acabava de lhes ser comunicada, fizeram uma reunião e decidiram por unanimidade retornar no primeiro comboio para Portugal.
Efectivamente, esta manhã às quatro saíram para Coimbra.”
Nas primeiras horas desta tarde [25 de Fevereiro, mesmo dia da partida para Coimbra] recebeu o sr. Gil este outro telegrama do Governador de Valladolid: «Pode permitir V. S. aos estudantes de Coimbra que venham a esta capital. – Governador civil.»

"Às seis da tarde de ontem [26 de Fevereiro] recebemos na nossa redacção [“La Libertad” de Valladolid] a visita do Presidente interino da Comissão escolar para comunicar-nos que os estudantes de Coimbra não virão visitar-nos para já. Parece que a Direcção de Saúde se opôs a que viessem a Valladolid, tendo em conta o estado excepcional em que se encontra actualmente o vizinho reino lusitano por motivo da peste bubónica.
À Comissão que se dignou visitar-nos estranhava-lhe tais medidas, por que, se houvesse alguma razão para adoptar-las, deveriam tomar-se logo, não permitindo aos estudantes de Coimbra ir a Salamanca, em cuja capital estão agora a celebrar veladas e récitas com grande aplauso dos salmantinos. Mas o caso é que, ouvindo as advertências da Direcção de Saúde, o ministro da Governação telegrafou, com carácter de urgência, ao governador civil desta província a fim de que não permita a vinda dos estudantes portugueses a esta capital. E o sr.  governador comunicou-o imediatamente aos estudantes vallisoletanos. Uma comissão destes saiu no comboio para Medina com o objectivo de avisar os seus companheiros de Coimbra.
Suspendeu-se, pois, toda a classe de preparativos que se estavam a fazer para receber a Tuna Portuguesa.” [4]

Foto com a TAUC que ilustra a visita sr. D. Abelardo Pietro Veja,
 em 8 de Março de 1900,  a Coimbra, em nome da academia de Valladolid,
 para dar uma satisfação acerca dos motivos  pelos quais a autoridade superior
não deixou seguir a Tuna Académica para aquela cidade.


Por que razão, depois da inicial proibição, surge novo telegrama a permitir a viagem a Valladolid?
Muito provavelmente porque se veio a considerar que o surto de peste, que porventura se pensava generalizado em Portugal, estava, afinal, confinado à cidade do Porto e que Coimbra estava a salvo da epidemia, pelo que sem razões para aplicar a quarentena aos estudantes conimbricenses.

O certo é que logo no mês seguinte, e após a visita de D. Abelardo Pietro Veja a Coimbra, em nome da academia de Valladolid, a TAUC regressa a Salamanca e a Valladolid, esquecido o desagravo de que fora alvo.


Depois do périplo por Salamanca e Valladolid, a TAUC ruma a Madrid:


TAUC em Madrid - Nuevo Mundo, Ano VII, N.º 326, de 04 de Abril de 1900, p.16


ESTUDANTINA PORTUENSE



 Diário Illustrado, 29.º Anno, n.º 9686, de 26 de Fevereiro de 1900, p.1


Embora ao de leve assinalado em Tvnae Mvndi, trazemos mais detalhadamente o caso que envolve a Tuna portuense que pretendia deslocar-se à Galiza (para visitar Santiago de Compostela) e é impedida de entrar em Espanha por ordem do Director Geral da Repartição de Saúde de Madrid - que telegrafa a sua decisão ao governador da Corunha.
Informado o  Alcaide (presidente da câmara) de Santiago de Compostela, este telegrafa ao presidente da Tuna do Porto dando-lhe conta da decisão e da tristeza de os não poder receber. 

Uma vez mais, e tendo em conta que a ordem vem de uma autoridade de saúde pública, e ao que similarmente sucedeu com a Tuna de Coimbra, todos os motivos apontam para o receio que havia, em Espanha, que a epidemia que se fazia sentir no Porto lá pudesse chegar.

Passando os olhos pelos seguinte excerto, é evidente que estávamos perante um grave caso de saúde pública e o receio de que as numerosas comitivas constituídas pelas tunas, especialmente a do Porto, pudesse ser um veículo de transmissão de doença.

"O Porto, em particular, apresentava condições especiais para o desenvolvimento das doenças, por ser uma cidade industrial com uma população de grande mobilidade a viver nas piores condições de salubridade. Apesar das medidas do Estado para melhorar a higiene pública, no final do século XIX os problemas da cidade do Porto persistiam de tal maneira que Ricardo Jorge apelidou-a “cidade cemiterial”. Nas suas obras, o professor de medicina aprofundou a questão das ilhas como causa para a proliferação de doenças e epidemias, com especial destaque para a tuberculose (Jorge, 1899). Esse seu trabalho ajudou a influenciar a rainha dona Amélia na criação, nesse mesmo ano, da Assistência Nacional aos Tuberculosos e na construção de sanatórios para os doentes (Almeida, 1995). Até no estrangeiro a situação era conhecida: “O Porto tem falta de um bom sistema de canalização e a imundice nos bairros baixos da cidade é indescritível e suficiente para provocar qualquer epidemia. … É agora necessário tomar medidas muito enérgicas, construir novos esgotos ou sem isso o Porto continuará a ser das cidades mais insalubres da Europa” (Diário..., 5 set. 1899, p.1).
(...)
"Em 1899 declarou-se no Porto uma epidemia de peste bubónica, diagnosticada pelo professor de higiene e medicina legal da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Ricardo Jorge, na altura médico municipal e diretor do posto de desinfeção pública do Porto, e verificada por vários médicos estrangeiros que se deslocaram a Portugal para estudar a doença e que publicaram relatórios sobre o combate à epidemia, nos quais o trabalho de Ricardo Jorge foi elogiado (Calmette, Salimbeni, 1899; Ferrán y Clua, Viñas y Cusi, Grau, 1907; Montaldo y Peró, 1900). Em 24 de agosto de 1899 foi estabelecido um cordão sanitário à volta do Porto, cercado pelas autoridades militares, que foi levantado em 22 de dezembro."[5]

Ficam, pois, esclarecidas as razões pelas quais, no ano de 1900, duas tunas portuguesas foram impedidas de viajar em/para Espanha.





[1] Em razão da onda anarco-sindicalista, e do movimento separatistas registado sobretudo na Catalunha, após a guerra hispano-americana ou, então, do receio dos ideais republicanos (republicanos que obtiveram, nesse mês de fevereiro, uma estrondosa vitória eleitoral no Porto).
[2] DN, 36.º Ano, n.ºs 12.291 e 12.295, 24 de Fevereiro e 1 de Março de 1900 (respectivamente) p. 1.
[3] COELHO, Eduardo, SILVA, Jean-Pierre, SOUSA, João Paulo e TAVARES, Ricardo - QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal. Euedito, 2011, p.178
[4] NASCIMENTO, António José S. e NASCIMENTO, José António S. – Estudantes de Coimbra em Orquestra: Tuna Académica da Universidade de Coimbra (1888 1913). Coimbra: Bubok Publishing S.L., 1.ª ed., 2010, pp. 133-134. Em linha (p. 216)
[5] ALMEIDA, Maria Antónia Pires -  As epidemias nas notícias em Portugal: cólera, peste, tifo, gripe e varíola, 1854-1918. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n.2, abr.-jun. 2014, pp. 692-693. Em linha

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